sexta-feira, dezembro 20, 2013

Tapa na cara



Imagina se toda banca de jornais, toda mídia, toda arte, tivesse homens nus, representados como objetos sexuais, nas revistas, nos quadrinhos, nos filmes, nos anúncios. 

Cresci em uma sociedade onde a mulher é vendida como peixe.

Pessoalmente, é como receber um tapa na cara, todo dia, todo lugar.

Cada vez que abro um poster da Marvel com mulheres peitudas com cara de "me come", ou a capa de qualquer revista vendendo qualquer coisa, associada a uma mulher com lordose, em uma posição humanamente impossível, simulando um ato sexual com algum incubus invisível, preciso combater esses demônios externos para impedir que minha autoestima desça um degrau.

Queria saber se esse mal estar só acontece comigo, ou se outros humanos compartilhariam a mesma sensação.

Você, humano, se visse seus "valores" reduzidos à excitação sexual que seu corpo provoca, como se sentiria?

Não se trata de uma crítica.
Ainda.

Usar apelo sexual para manipular a audiência é um velho truque que a mídia, que nós, artistas, sabemos muito bem como usar.
Eu sei como usar. E já usei. Funcionou.
Com os homens, é claro. Eu não compraria.

Por isso minha pergunta: comprariam um livro/cartaz/obra de nus masculinos em situação de puro apelo sexual?

Porque sinto repulsa por livros/revistas/cartazes onde mulheres são colocadas como bifes temperados com hormônios.
E não se passa um dia sem que eu veja um post de algum colega artista mostrando o clichê batido da gostosa com lordose, chupando o dedo, com ou o peito ou a bunda de fora (ou os dois).

Este mês não quis adquirir o livro de um querido amigo.
O livro inteiro é de imagens de "gostosonas".
Eca.

Repara só:
Gostosa "qualifica" a pessoa como "comestível", "consumível".

Ok, adoro quando meu namorado me chama de gostosa. Mas a imagem de uma pessoa, transformada em algo consumível em uma página de revista, é patético.
Não pela "transformação em si", mas pelo que ela implica culturalmente.
Meu namorado é gostoso.
Mas ele não é consumível, nem existe apenas para "me satisfazer"!
É o fato dele ser um homem inteligente, generoso e antenado, o que faz com que eu o ame. Eu o admiro, quero compartilhar de seu mundo, e se eu puder ajudar, quero vê-lo feliz.

Não é bem isso que esses caras que colocam mulheres nas capas querem.
Não há nada ali que mostre algum apreço pela pessoa retratada.
É apenas pelo prazer imediato e descartável que um corpo (sem alma) pode proporcionar. O tempo de uma "aliviada". Nada mais.

E se você, rapaz, fosse diariamente retratado como nada mais que um "consolo" descartável?

Cara... isso é brochante.
Machismo é a coisa mais brochante que existe.
Além de ser patético.
Algo que minimiza qualquer homem aos meus olhos.

Não me imagino expondo minha taras sexuais aqui, nem em imagens, nem em comentários.

Imaginem vocês, as artistas e as publicitárias colocando na mídia um desfile de saradões, com poses acrobáticas, contextualizados como meros brinquedinhos sexuais das mulheres?

A mulherada transpira,  enquanto os homi pira!

Imagine, você, rapaz, menino, com cinco anos, vendo isso na sua cara, todo dia, em todo lugar, até nas prateleiras dos brinquedos?

Olha aí o "comandos em ação" – só que "ação" aqui seria de outro tipo e submetido à aprovação e controle das meninas.

Expor seu desejo sexual por mulheres "objetos", esfregando-o na cara de todo mundo, está longe de ser uma prática socialmente sadia. Expô-lo como afirmação de uma suposta "superioridade" de um gênero, em relação ao outro, é cruel. É podre.

Entendo que certos mercados (pornô) estão aí para isso.
Entendo que, dependendo da obra, o nu precisa estar presente, e muitas vezes dentro de um contexto onde a sexualidade é bem justificada pela narrativa.

Entendo que o nu, por si só não ofende.

Aliás, deveria ser melhor aceito – e não ser alvo de uma dinâmica insana onde ora é reprimido, ora é transformado em mercadoria ou bem público!

Reparem como é tranquilo e honesto o estilo de vida naturista.
Todo mundo nu. Nada de humilhação ou dominação.
Nem mesmo a roupa está ali para objetificar você (pois é, dependendo de como se usa, roupa também rouba sua alma).

Infelizmente estamos anos luz de tratar nossa sexualidade, essa "coisa" tão vital e importante, de forma sadia para todos. 

Mas essa "prática" de representar a mulher (e eu sou uma!) como se fosse "um orifício para aliviar homens de seus impulsos sexuais" e nada mais, está em TODO lugar.
Está em propaganda de comida, bebida, remédio, clube, carro, sapato...!
Até mesmo em imagens e brinquedos voltados para crianças e jovens!
ARRRGH, chega #$@%!!!!

Ontem fui com meu namorado ver o filme Gravidade.

Como fã de astronáutica desde sempre, amei o filme, é claro!
Meu sonho de infância era ser astronauta.
Cheguei a conhecer com a doutora Mae C. Jemison, da NASA, pouco tempo antes dela subir em órbita. Conversei com ela, pedi orientações, mesmo que no fundo eu soubesse que esse era um sonho inviável na minha realidade terceiromundista.
Fui para faculdade de astronomia buscando a "melhor opção após essa".

Delirei com o filme Gravidade.

Só depois que fui perceber a fuga do padrão Róliudi: a protagonista mulher em um filme de pura ação.
E o mais inusitado nesse tipo de produção: agindo como uma mulher NORMAL!

Nada de super poderes ou ninja weapons para justificar sua linha narrativa. Nada de afetações, beicinhos ou cabelos de anúncio de xampu. Nem mesmo músculos bombados, antinaturais em 99% dos humanos (sejam estes machos ou fêmeas).
A única cena que poderia ser, e mesmo assim bem pouco, de apelo sexual, é a que ela se livra do traje e se deixa relaxar dentro da estação (spoiler!) russa.

Mas, não... Vi como uma homenagem ao Stanley Kubrick (coisa de minha cabeça, provavelmente não era). Era só o contraponto de alívio que o roteirista usa para valorizar a escalada seguinte em suspense e ação.
Talvez outros mais velhinhos se lembrem da cena de abertura do filme Barbarela (lhes surpreenderia saber que me amarro também nesse filme toscão e de fortíssimo apelo sexual? Explico se quiserem em outro post).

Não havia nem peito, nem bunda sendo esfregada na nossa cara.
Sem desvios da narrativa densa, nervosa e sensacional.

Recomendo, especialmente para você que é mulher.
Um filme blockbuster que não dará tapa na sua cara.

Um comentário:

disse...

Adorei seu texto. Disse tudo.