Convite ao Encontro
Joel Rufino dos Santos, foi para nós um exemplo de intelectual plenamente inserido no ritmo de seu tempo, fosse nos temerosos anos da Ditadura, fosse na nossa pueril Democracia, tantas vezes abortada antes de atingir seu pleno desenvolvimento. Independente disso, seu legado permanece e avança para além do presente. Há de se estudar e dialogar com seus livros, literatura, ensinamentos.
É de Joel, professor e amigo, que solicito ajuda para começar esse texto que, como verá, o levará até o ponto onde possa aceitar um convite, que sei, lhe será de grande agrado.
Ensinou-me o mestre, em sua fala gentil, sobre como construímos no Brasil determinado tipo de narrativa, proposta a partir de interesses de determinado grupo, e de como isso calou por muito tempo as vozes, a diversidade de vozes, que compõe as narrativas brasileiras.
A produção cultural, da dita "alta cultura" tem lugar e dono. Os "escritores" brasileiros são em sua maioria homens brancos, de classe média, moradores de áreas "nobres" de grandes centros urbanos. É assim nas redações do telejornais, nos editoriais das revistas mais ricas, nos palcos do teatro, telas de cinema, nos tribunais, cartuns, quadrinhos e, enfim, na literatura, desde que os primeiros folhetins nos chegaram trazidos d'além mar para deleite daqueles que podiam ler.
E como registrar suas próprias histórias, narrativas que conduzem a vida, se não se sabe ler?
É na literatura entretanto, que a figura do pobre, invisibilizada na política e na economia, ganha protagonismo. O pobre é ali figurado, ganha contornos, cores, comportamentos.
Mas, o que é o "pobre" afinal?
É o iletrado? O marginalizado dos meios de produção? Qual a narrativa que construiu em nossas cabeças o que é "pobre"? Pobre, nas narrativas oficiais, é aqueles que deseja mas não pode, é fator de desestruturação da sociedade em direta oposição à rica elite estruturadora. Por definição, os pobres são a classe perigosa.
Assim, coube aos escritores dos folhetins e seus herdeiros, reproduzir modelos sobre o que é o pobre com ideias convenientes à dominação social. Cindindo também nas letras a sociedade em classes que se opõem, uma oprimindo, outra oprimida.
Darcy Ribeiro definiu que há de fato dois tipos de intelectuais: o contente e o irado.
O primeiro, gosta das coisas como estão. Aliena-se da dor daqueles cujo desejo é suprimido, aceita os privilégios de poucos, ganha sua vida assim. Não irá chiar a não ser que lhe doa nos próprios privilégios de porta voz do status quo.
O segundo, lamenta o sufocar das demandas do povo, se sensibiliza com as dores e sofreres de seus irmãos. Muitas vezes se engajará, colocando à risco a própria paz de espírito, quando não a saúde, para fazer sua parte, naquilo que crê, ser o caminho para uma sociedade mais generosa e justa.
Pode ser frustrante contrariar seu papel de propagador da ideologia dominante, mas também pode ser purificante.
Não são muitos, ainda hoje, intelectuais que fujam ao seu papel de extratificadores de classes. Que rompam com o paternalismo intelectual de uma classe sobre outra. Mas de quando em vez, sairá do mundo dos pobres, um porta voz que coloca por terra as barreiras das elites. Foi assim com Patativa do Assaré. Não se dobrou às normas "de cima", pelo contrário, fez as suas e as impôs pela força de suas narrativas.
Daí ficamos a definir o que é um "intelectual".
Intelectual é aquele que, sendo de determinado grupo social, fala de seu grupo para a sociedade. Ao mesmo tempo, ele estabelece para seu grupo determinadas normas de conduta, tendo também uma função pedagógica: representa externamente seu grupo, e educa internamente o mesmo.
A este, Gramsky chamou de "intelectual orgânico".
Uma das dificuldades para a abertura de espaço para os intelectuais do povo, é que até bem pouco tempo, os meios de produção e divulgação de arte eram caros, detidos nas mãos de poucos. Assim, a elite dona dos jornais, gravadoras, escolas, reproduzia para o consumo geral a sua própria narrativa hegemônica.
Os intelectuais que emergem dos círculos populares, agora tem melhor acesso aos meios. Seja por internet, ou pelas políticas públicas do último periodo político, nas rádios comunitárias, agora vemos e ouvimos um proliferar de vozes, centenas milhares, que na verdade sempre estiveram por lá.
Nunca em toda a cidade do Rio de Janeiro se ouviu tantos saraus, rodas de samba, oficinas literárias, feiras de trocas de zines. Da rua à rede, e desta de volta a rua, o que vemos é uma ocupação das vias, por parte daqueles que tem muito a expressar e quebrar na narrativa hegemônica.
Quando nos prendemos a uma só história, destruímos a possibilidade de conhecimento do outro. Caímos na armadilha do "pobre" do folhetim, do "outro" onde não nos reconhecemos, simplesmente por que nunca tivemos acesso a nenhuma outra narrativa ao seu respeito a não ser aquela única, alienante, que nos torna opositores entre nós.
Saber das demais histórias de alguém, é traze-lo para perto de si.
Não é por acaso que uma das formas de dominar uma população é impedindo o seu acesso a outras narrativas que não a imposta pela classe dominante.
Assim todos somos postos a ver a mesma novela, o mesmo telejornal, o mesmo ensino de banco de escola do pensamento único, sem o qual não se lançaria povos em guerras, ou se faria possível matar a um irmão.
A violência se alimenta da alienação, em todos os seus níveis. Desumanizar, negar direitos iguais, é a forma como se prepara o campo para violar seu semelhante.
Foi seguido a um periodo de extrema alienação de valores humanitários, que se produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 1948). Nela se incluem entre seus trinta artigos, aqueles que protegem expressamente o direito à diversidade de narrativas, seja como autores, propagadores ou fruidores. A saber:
Artigo 7
Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Não se pode diminuir uma pessoa, através de discursos preconceituosos, negando sua condição humana. Entretanto, vemos em discursos políticos, religiosos e até mesmo em projetos educativos, palavras ou propostas que violam esse direito essencial.
Artigo 19
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.
Enquanto não tivermos acesso amplo e democrático dos meios de comunicação, este direito permanecer ainda incompleto. Com a Internet avançou-se, mas ainda não chegamos ao um ponto justo. Ataques ao Marco Zero da Internet, monopólios midiáticos, a pauperização de aparelhos públicos culturais e educacionais são no momento as maiores faltas.
Artigo 26
I) Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnica
profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
II) A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
III) Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
Entretanto, ainda não vimos no país um real esforço pela democratização do ensino. Seguimos enfrentando políticas de sucateamento, com grande interferencia de grupos privados que visam tornar o direito humano à educação em mercadoria para lucro de poucos em detrimento da necessidade de muitos.
Artigo 27
I) Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios.
II) Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
Aqui falamos de direitos autorais, estes que devem atender tanto ao público quanto ao criador da obra artística. Quando interagimos com as artes, é preciso ter em mente suas funções sociais. Elas devem se fazer acessível, têm valor de registro de sua época, é direito do público saber a quem creditar a obra e é direito de quem a cria ter seus valores morais e materiais salvaguardados.
Repare que nenhum destes parágrafos especifica o que é cultura, ou o que é melhor ou pior em termos de artes e manifestações culturais. O que temos como "cultura" é uma construção de determinada época, região, e tem intenção ideológica nela. Ou seja: a cultura não é um conceito absoluto. Aliás, devemos nos acostumar a questionar sempre o que nos é dado como dogma, como determinado, como ideia única, como única história.
É preciso aprender a desconstruir narrativas que nos chegam cristalizadas, para se aproximar.
Nos definimos em oposição ao outro. Assim a mulher se define em oposição ao homem – que hegemoniza a cultura a partir de seu ponto de vista. E o negro se define em face ao branco, que da mesma forma dominou as narrativas. O negro é contado à partir do centro branco, masculino, heterossexual e rico.
De sua ilha de privilégio, não cabe ao homem, branco, hetero, rico, romper com as estruturas opressoras de narrativas. Ele está cego em sua posição, sob holofotes que o perseguem desde o dia em que nasceu, quiçá até antes. Caberá àquelas e aqueles que tiveram seu protagonismo suprimido, libertar o mundo da narrativa hegemônica, do discurso alienante. Simplesmente porque, apenas elas e eles, tem o que é necessário: que são suas próprias narrativas. São as histórias das periferias, de quem lutou pelo direito de viver, sobreviver, da poesia das quebradas, da música marginal, dos ranchos, dos toques dos atabaques, das vielas, das celas, dos cárceres, dos abrigos, dos hospícios, dos campos, dos cantos dos amordaçados de um país onde cada cabeça pode propor um novo universo.
Nós, humanos, somos construídos pelas narrativas das quais dispomos. Com elas nos definimos. A religião é uma narrativa, a forma como lidamos com nossos familiares também, nossas crenças no que é bom de se comer, falar, são histórias que "colaram" em nós. Sociedades são construídas através dos pontos em comum das narrativas de seus membros. Mesmo a história oficial de um povo não é mais do que uma narrativa única, incompleta, alienante do que foi o real daquelas pessoas que nos precederam. Não à toa, Joel Rufino escreveu seus tomos onde resgatou as narrativas de nossa história do Brasil contada por classes nunca antes ouvidas, e não à toa, teve sua obra destruída e foi cassado pelo governo militar da Ditadura, que mais que tudo, só pode dominar suprimindo violentamente todas as narrativas que não a sua.
E de onde vêm essas narrativas?
Vem de nossos pais, da vó que contava a história antes de dormir, dos "causos" contados à mesa de jantar ou na roda de viola, da fofoca das vizinhas, da novela das oito, do âncora engravatado do jornal nacional, dos filmes blockbusters estrangeiros monopolizando as telas dos cinemas… Elas nos definem, e não é fácil resistir à elas, especialmente quando se é uma criança. Narrativas nos conformam ou revoltam, dependendo de quem a conta. Podem domar os desejos e manter um país inteiro sujeito à condições péssimas para seu povo, porque fizeram-no crer de quem tem de ser assim, mas também podem despertar consciências, uma crítica lúcida sobre o porquê do estados das coisas que nos oprimem.
Uma das narrativas mais perigosas que podem nos imprimir, é a de que somos inimigos. Pense em alguém, qualquer pessoa, que de alguma forma lhe inspira raiva, ou repulsa. Pense em como se formou esse sentimento em você. Foi alguém que lhe ensinou ou algo que leu? Foi esta pessoa que lhe fez ou falou algo rude? De qualquer forma, o quanto sabe a respeito desta pessoa que justifique a encarar como um inimigo e não uma igual? Em outras palavras, quais foram as narrativas sobre ela que teve acesso?
Alienar-se do outro é negar suas outras narrativas. Conhecê-las é se aproximar, humanizar. Mesmo o pior dos inimigos, tem em si um conto de afeto, de ternura. Compreender é abrir possibilidade de se conviver, de respeito mútuo.
Portanto, se pretendemos uma sociedade pacífica, justa e harmoniosa, é urgente que se inicie tornando possível que todos possam contar suas próprias histórias, e o que é mais importante de tudo: serem ouvidos.
Meu convite portanto é esse: vamos nos organizar de formas a que isso aconteça aqui dentro do Novo Degase?
Thais Linhares – Diretora Administrativa Adjunta do Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH, vice-presidenta da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantojuvenil – AEILIJ.
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